O Brasil precisa de um Ministério Público fiscal, probo, desburocratizado e inserido num Sistema de Justiça Criminal ágil, integrado e coativo, próximo das questões de ordem pública e envolvido dentro das corregedorias na defesa e execução das leis e na consolidação da supremacia do interesse público, contra a corrupção, imoralidades, improbidades, criminalidade e violência que afrontam a confiança nos Poderes, o erário, a vida, a educação, a saúde, o patrimônio e o bem-estar do povo brasileiro.

domingo, 23 de novembro de 2014

O TEMIDO FAREJADOR DE FORTUNAS DA CORRUPÇÃO



ZERO HORA 23 de novembro de 2014 | N° 17992

MOISÉS MENDES

COM A PALAVRA - SÍLVIO MARQUES



Os pessimistas serão derrotados desta vez. O Brasil conseguirá repatriar a maior parte do dinheiro desviado pela corrupção na Petrobras, graças ao aperfeiçoamento da cooperação entre investigadores, Justiça e organismos internacionais. É o que assegura o promotor paulista Sílvio Marques, um dos maiores rastreadores, no Ministério Público brasileiro, de recursos enviados pelos corruptos para o Exterior. Marques ganhou fama como o promotor que enquadrou o ex-prefeito Paulo Maluf, recuperou parte do dinheiro desviado pelo político e conseguiu sua condenação por improbidade. Atua no MP do Patrimônio Público e Social de São Paulo e se dedica atualmente, entre outros casos, às sindicâncias do cartel do metrô, acusado de superfaturar obras e pagar propinas. Quase todos os dias, Marques fala com alguma autoridade estrangeira. Tenta identificar pistas de desvios e das contas por onde passaram. Segue rastros e busca cooperação na Suíça, na Alemanha e nos Estados Unidos. É um otimista com os desdobramentos da Operação Lava-Jato, com a qual colabora por meio do modelo de acordo que fechou com o Deutsche Bank este ano. O banco indenizará a prefeitura paulistana com US$ 20 milhões, por ter feito circular o dinheiro que Maluf desviou do município entre 1993 e 1996. Seu otimismo com os impactos da devassa na Petrobras decorre também da certeza de que a nova lei anticorrupção 12.846, em vigor desde o início do ano, será efetiva como inibidora da ação de empresas corruptoras. Sílvio Marques, 48 anos, é promotor desde 1991, mestre e doutor em Direito pela PUC-São Paulo e doutorando em Direito Internacional, com especialização em cooperação jurídica, pela Universidade Paris I Panthéon-Sorbonne. A seguir, os principais trechos da entrevista que concedeu a Zero Hora por telefone.


É correta a sensação generalizada de que não se recupera o dinheiro desviado pela corrupção?

Já não é mais verdade que não se consegue recuperar. O Brasil subscreveu várias convenções internacionais bilaterais e multilaterais com diversos países. Uma delas é a Convenção de Palermo, de 2000. Há também uma convenção da ONU contra a criminalidade organizada, de Mérida, no México. São convenções que permitem a repatriação de valores desviados, a transmissão de processos e a troca de informações e documentos entre países.

O senhor conseguiu recuperar quanto do que foi desviado por Maluf?

Conseguimos US$ 33 milhões que estavam na Ilha de Jersey e temos a garantia de repatriar mais US$ 23 milhões. Há ainda outros US$ 20 milhões de um acordo com o Deutsche Bank. O acordo que firmamos com o Deutsche, em fevereiro deste ano, foi solicitado como referência pelos procuradores da República que estão atuando no caso da Petrobras em Curitiba. Existem outros bloqueios internacionais, que vamos aos poucos recuperando, como US$ 220 milhões na Ilha de Jersey, 1,7 milhão de euros na França e mais US$ 3 milhões na Suíça.

Por que o acordo com o Deutsche é importante?

Porque estabelece a possibilidade de resolução de um conflito sem a necessidade de uma ação civil, que poderia demorar mais de uma década (o banco desembolsou os US$ 20 milhões como uma espécie de indenização inédita ao município de São Paulo, por ter abrigado as contas do dinheiro desviado por Maluf). O acordo evita um processo, que consome mais recursos públicos. E o dinheiro pode ser utilizado pelo poder público rapidamente. No caso concreto, o dinheiro deverá ser pago pelo banco em cerca de 20 dias. Do total de US$ 20 milhões, a maior parte (US$ 18 milhões) será destinada à Prefeitura de São Paulo e usada na aquisição de terrenos onde serão construídas creches. É importante mencionar que houve a recuperação dos US$ 33 milhões na Ilha de Jersey. A recuperação decorreu de uma ação civil proposta pela Prefeitura de São Paulo naquela ilha, com documentos remetidos pelo MP paulista, e não de decisão judicial brasileira. A Justiça estrangeira foi mais ágil que a Justiça brasileira.

Há bloqueio de dinheiro de Maluf no Brasil?

Trabalho no caso de Maluf desde o momento em que o processo foi distribuído, no dia 12 de junho de 2001. Em nenhum momento deixei o caso. Há várias ações em andamento no Brasil, que atingem R$ 5 bilhões. Estão bloqueadas todas as ações dele e dos familiares na Eucatex. Além de bens móveis e imóveis, até a casa no Jardim Europa. São bens bloqueados, que não podem ser alienados sem autorização judicial.

O senhor é otimista em relação à repatriação do dinheiro da corrupção.

Eu trabalho diariamente com isso, tenho contato quase diário com autoridades do Ministério Público e do Judiciário de vários países. Mesmo sem delação premiada, a condenação em segundo grau já permite a repatriação de dinheiro da Suíça, ou seja, antes do trânsito em julgado (última decisão judicial, a que não cabe recurso).

No caso da delação, o colaborador será obrigado a assinar um documento permitindo a repatriação do dinheiro. E a partir daí, são tomadas providências via Ministério da Justiça do Brasil, que entrará em entendimento com o Office Federal de la Justice de Berna (a Justiça Federal suíça), para repatriação pelos meios previstos no tratado com o país.

Como as contas são rastreadas com sucesso, se o senhor não dispõe, nas ações por improbidade, do recurso do delator da ação criminal, que indica onde está o dinheiro?

A colaboração premiada é permitida na ação criminal. No caso da ação por improbidade, na área civil, as contas são rastreadas por meio de pedido de auxílio mútuo (request for mutual legal assistance). O pedido é emitido pelo próprio promotor ou procurador, por meio de cartas rogatórias, emitidas por juízes. Os tratados viabilizam a cooperação jurídica internacional no âmbito civil. Há ainda, na cooperação internacional, o compartilhamento de provas obtidas em processos criminais e a comunicação espontânea remetida ao Brasil por autoridades estrangeiras.

Qual é a situação dos processos contra Maluf hoje?


O ex-prefeito responde a dois processos de ações civis públicas relacionados à remessa de valores para o Exterior. Os processos encontram-se em seu curso normal. Mas, como o procedimento é lento, não é possível dizer quando tais ações terminarão. No âmbito criminal, há duas ações em andamento no Supremo Tribunal Federal.

Por que, depois de condenado em processos por improbidade e impedido de concorrer, Maluf continua solto, sem um desfecho da ação criminal?

O ex-prefeito deve ser julgado pelo Supremo Tribunal Federal, pelo menos enquanto ele exercer a função de deputado federal. A Suprema Corte tem diversas outras causas que também devem ser julgadas. Sobra pouco tempo para julgar tais casos. Como se sabe, no Brasil, no âmbito criminal, existe o foro privilegiado, pelo qual o detentor de cargo ou função pública apenas é processado por tribunais. Em comparação a outros países, posso afirmar que o sistema judiciário brasileiro é atrasado e permite inúmeras medidas protelatórias dos réus.

Como a Lei anticorrupção 12.846 facilita o enquadramento do corruptor?

A lei permite a aplicação de uma série de sanções contra as empresas que corrompem agentes públicos. O Brasil finalmente regulamentou uma convenção da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), que prevê sanções contra as empresas que corrompem agentes públicos. Isso quer dizer que, se estiver envolvida em corrupção, a empresa pode ser processada conforme a lei brasileira. E se o fato ocorrer no Exterior, a mesma lei pode ser aplicada. É o que se chama de extraterritorialidade da lei brasileira.

Mas a Lei 12.846 vigora mesmo sem regulamentação?

Independentemente de regulamentação, já está valendo. A regulamentação apenas detalha e facilita a aplicação da lei. Todos os atos de corrupção após janeiro de 2014 (quando a lei entrou em vigor) podem ser atingidos pela lei. Mas já existiam leis contra a corrupção. Hoje, o que temos são mais instrumentos. Antes mesmo da nova lei já era possível até mesmo a colaboração premiada (conhecida como delação), desde a Lei 9.613, de 1998, aplicada em casos de lavagem de capitais.

O que mudou com a nova lei?

É possível aplicar penalidades que não estavam previstas. Antes, a lei de improbidade, de 2002, previa multa de até três vezes o valor desviado. Agora, pode chegar a 20% do faturamento da empresa ou até R$ 60 milhões. A multa ficou mais pesada. E a lei prevê até a dissolução da empresa.

A delação não está sendo usada de forma exagerada?

A colaboração premiada está consagrada. A redução da pena pode ser de até dois terços. E pode ocorrer inclusive o perdão judicial. Quem está colaborando com a Justiça pode não ficar preso. Quem conta a verdade, devolve o dinheiro e, em compensação, tem redução da pena.

Isso quer dizer que o doleiro Alberto Youssef pode ser solto?

A situação dele é diferente. Ele já rompeu um acordo de colaboração premiada, quando esteve envolvido na Operação Banestado, do Paraná (nos anos 1990, também pela remessa ilegal de dólares). Aquela pena ele terá de cumprir. Sobre o caso atual, será preciso saber qual será a sua condenação. Eu o ouvi por duas vezes por envolvimento nas investigações com Maluf. O dinheiro era oriundo de São Paulo e passava pelo Banestado. Ele enviava os dólares para o Exterior. Desde aquela época, Youssef já era considerado o doleiro dos doleiros, uma espécie de banco central dos doleiros no Brasil. E ele confessou que operava para Paulo Maluf.

Ele se envolveu no caso do cartel do metrô de São Paulo?

Não. Outros doleiros estão sendo investigados pelo Ministério Público Estadual e Federal e pela Polícia Federal. Mas por enquanto não há evidências da participação do Youssef. Mas também há (no caso do metrô) pagamento de propina e lavagem de dinheiro no Exterior.

O que o país ganha com a delação?

A repatriação dos recursos. O autor do crime terá de dizer onde está o dinheiro. Se for omitida uma transferência, a partir dos extratos é possível fazer o rastreamento inclusive de outras contas não reveladas. No caso de uma conta na Suíça, as autoridades do país irão rastrear as contas através do Escritório de Comunicação em Matéria de Lavagem de Dinheiro (MROS, da sigla em inglês). O MROs saberá onde a pessoa tem conta.

A cooperação internacional é o grande avanço do combate à corrupção?

Sim, porque a cooperação é marcada pela descentralização e pelo particularismo. Não existe um órgão que centralize as informações. Por isso são necessários os acordos bilaterais e multilaterais. Quanto ao particularismo, quer dizer que a cooperação efetiva segue a lei do país para o qual foi enviada a solicitação, a Suíça, por exemplo. Toda vez que se faz um pedido às autoridades da Suíça, há um procedimento a ser cumprido. Mas, mesmo sendo aplicada a legislação local, o que se visa em primeiro lugar é ao atendimento do que diz a legislação brasileira, para que se cumpra o pedido. A expressão em latim é locus regit actum (lei do local que rege o ato). É assim que se tem a repatriação de pelo menos boa parte dos valores do Exterior.

Mas a população não irá se frustrar, porque o dinheiro volta, mas o delator fica solto?

É natural a revolta da população, que vê o dinheiro da Petrobras, que é de todos nós, ser desviado para enriquecimento de agentes públicos e privados. A população quer as pessoas presas e também quer ver o dinheiro devolvido. Só que, em decorrência do particularismo das legislação, é preciso ter um pouco de paciência em relação à repatriação. O dinheiro não retorna de imediato. Mas o MP e juízes são experientes, conhecem os caminhos que devem ser feitos. Eles conhecem a cooperação internacional.

O que é preciso para aperfeiçoar o combate à corrupção?

O endurecimento da lei penal. Sobretudo no que tange à execução da pena. Hoje a execução da pena permite uma série de benefícios aos réus. Vale a pena cometer esse tipo de crime, porque a punição é muito branda. É preciso que cumpram a pena aplicada. Todo mundo viu, no caso do mensalão, que os réus saíram rapidamente da prisão. Há muitas facilidades para sair da cadeia. É preciso reduzir os benefícios.

Mas isso depende da votação das leis pelo Congresso.

Sim. Também precisamos aperfeiçoar as leis civis a respeito da corrupção nos casos da improbidade administrativa. Existe uma fase anterior à citação do réu que permite todo tipo de subterfúgio, para que o réu fuja da lei. Essa etapa permite que um réu fique dois ou três anos enrolando até o julgamento do caso. Os procedimentos do processo civil no Brasil são absurdos. É preciso uma reforma substancial no procedimento civil e criminal. Apenas o Congresso Nacional pode modificar tal situação, reduzindo as fases dos processos civis e estabelecendo punições para os autores de ações desprovidas de fundamentos, ou para os réus que se valem de medidas procrastinatórias. Em Jersey, por exemplo, o ex-prefeito Paulo Maluf recebeu multas pesadíssimas por se opor de forma injustificada às medidas da Royal Court (a Corte de Justiça da ilha).

O Brasil muda depois da Operação Lava-Jato?

Esse caso da Petrobras é emblemático por conta do volume de dinheiro desviado. Não tenho dúvida de que será um caso paradigmático, porque, além do dinheiro, envolve uma quantidade enorme de provas por conta da colaboração premiada.

Mudará também o comportamento das empreiteiras?

Acredito que as empresas devem ter mudado o comportamento quando da entrada em vigor da nova lei anticorrupção. Porque as penalidades são muitos fortes contra as empresas corruptoras. Todas as empresas do caso da Petrobras, envolvidas em atos ilícitos, a partir de janeiro deste ano, correm o risco das altas multas e até de serem extintas.